10.03.2020 – No dia de hoje, em meio à pandemia de Covid-19, deparei-me com uma notícia vinda do Reino Unido, que me lembrou muito uma situação análoga que ocorre em um país longínquo, situado na América do Sul, chamado Brasil.

Me refiro à mudança da liderança de uma das agências mais conhecidas do mundo, no combate à corrupção: SFO, ou Serious Fraud Office britânico. Saiu David Green e entrou Lisa Osofsky.

No artigo, o autor aproveita para comparar a atuação do SFO com a atuação do US DOJ, norte-americano, informando que desde a gestão de David, o SFO enveredou-se em investigar casos pequenos, apesar da “boa vontade” de David em perseguir casos mais robustos. O artigo, todavia, é direcionado para a ineficácia do SFO em alcançar resultados concretos, chegando a ponto de abandonar investigações complexas em empresas como Libor e GlaxoSmithKline; e, atualmente, sob a liderança de Lisa, no ano passado, o número de novas investigações caiu em 50%, destacando-se apenas o acordo feito com a gigante Airbus; ao passo que a instituição norte-americana foi mostrada como um exemplo de eficiência, em que existe começo, meio e fim, ou seja, investigação, julgamento e aplicação da pena… isso em um espaço de tempo bastante razoável, se considerarmos a complexidade das questões, a localização das violações e a quantidade de evidências a serem revisadas.

O que isso tem a ver com o Brasil? No meu entender… tudo!

No Brasil, os direitos fundamentais do cidadão estão incluídos no Art. 5º da Constituição, sendo que deles, o único que não comporta exceção é o direito a não ser torturado (Art. 5º, III da CF/88). Portanto, como conseguir a confissão de alguém, sem ter que torturá-lo para isso? Daí nasceram ideias como a delação premiada e os acordos de leniência.

O norte-americano foi além e a sua “delação premiada” não se reflete apenas na redução da pena, materializada em um documento chamado Guilty Plea (já descrito em um post nesse website), mas na proteção do emprego e na premiação em dinheiro para aquele indivíduo que denuncia algo errado em uma empresa; prêmio esse que pode chegar ao valor de 30% (trinta por cento) do valor da multa aplicada. Se considerarmos que as multas americanas são, em geral, na casa dos milhões de dólares, estaremos falando de um prêmio considerável. Isso cria uma significativa diferença em relação aos demais países, ou seja, não é preciso esperar pelo poder público para auditar ou fiscalizar algo para encontrar fraudes, lavagem de dinheiro, corrupção, etc… a denúncia surge espontaneamente de dentro das próprias empresas.

Importante salientar, que o Brasil não possui uma agência especializada no combate à corrupção, sem que tal ilação tenha o pendão de mácula ao hercúleo trabalho feito pelo Ministério Público.

Porém a despeito disso, o que será que torna tão mais difícil combater a corrupção por aqui? Podemos utilizar uma palavra inglesa chamada…

ENFORCEMENT

Não significa nada além do que o simples cumprimento da lei. Essa sim é a grande diferença entre o sistema norte-americano, o inglês e o brasileiro.

Tal diferença já nasce no momento em que a lei é elaborada.

Um exemplo que me agrada é o da transparência na área de saúde. Por incrível que possa parecer, o Brasil não possui uma lei de natureza federal que obrigue as empresas do setor de saúde, especialmente farmacêuticas, a colher as informações de pagamentos feitos a profissionais de saúde, obrigando-as a reportar tais pagamentos à autoridade, a fim de que tais informações sejam disponibilizadas à população, para que, no momento da escolha de um profissional de saúde (especialmente o médico), o paciente possa ter transparência a respeito de quanto aquele médico recebeu de uma empresa em razão de serviços prestados ou suportes científicos, para sentir-se seguro de que o medicamento a lhe ser prescrito não tenha sofrido nenhuma influência do fabricante. Se a esfera federal, não se movimentou, Minas Gerais assim o fez e aprovou em dezembro/2016 uma lei obrigando as empresas a reunirem tais dados e repassarem à Secretaria de Estado de Saúde de MG tais informações de pagamentos a profissionais de saúde registrados nos respectivos conselhos mineiros, incluindo despesas a acompanhantes.

Iniciativa louvável, sem dúvida. Todavia, ao ter que dar uma palestra sobre o tema, imprimi a lei… 2 páginas. Depois veio um decreto de 1 página, 1 resolução de 2 páginas e mais 1 resolução de 1 página. Falamos de 6 páginas. A União Europeia, em 2013, por meio de auto-regulamentação da associação das indústrias farmacêuticas na Europa (EFPIA), criou um documento chamado Disclosure Code. Fui imprimi-lo… 21 páginas. Os EUA foram os primeiros, mais uma vez, a criar tal regulamentação em 2010 chamada de Physician Payments Sunshine Act. Fui imprimir o documento… 71 páginas.

Estou tentando traduzir o que vou falar, sob o plano físico, para que se tenha uma ideia exata do que é enforcement. Se nos EUA, uma empresa equivocadamente não informar um pagamento feito a um profissional de saúde, ela deverá pagar de USD$ 1 mil a USD$ 10 mil por pagamento omitido involuntariamente (por erro). Se, por outro lado, ficar demonstrado que a omissão tenha sido intencional, essa multa sobe de USD$ 10 mil a USD$ 100 mil por pagamento omitido voluntariamente.

E o que acontece na nossa lei, se alguma empresa deixar de cumpri-la? Essa é a resposta que a Assembleia Legislativa de MG nos deve até hoje, simplesmente porque a lei mineira não prevê penalidade. Por melhor que tenha sido a intenção do legislador, a falta do enforcement, gera algo que nós brasileiros conhecemos muito bem: a impunidade. E a expressiva parte das nossas leis, carecem de regulamentação específica robusta que acelere a sua aplicação e o seu cumprimento.

Assisti recentemente um interessante vídeo do Ministro Luiz Roberto Barroso, no qual ele descrevia o andamento de um processo e as possibilidades de recurso até o trânsito em julgado… eram mais de 10 recursos. Como combater o crime, como combater a corrupção, em um sistema como esse? Como querer enforcement, ou seja, o cumprimento da lei, em um prazo digno, razoável em um sistema que ainda prevê prescrições e decadências, e que ainda discute a relevância da prisão em segunda instância? Isso sem falar em regime de progressão de pena e imunidades…

Algo está muito errado!

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