05.03.2020 – Por diversas vezes, nos deparamos com diversos dilemas e conflitos de interesses, para os quais somos forçados a tomar uma decisão que nem sempre é fácil.

Em mercados regulados, onde existem limites impostos pela autoridade regulatória na forma de atuar e fazer negócios, essa questão é ainda mais presente.

Todavia, existe um setor específico em que a situação é muito mais complexa e eu me refiro ao setor farmacêutico.

A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) editou a Resolução RDC 96 em 17 de dezembro de 2008, que teve como propósito regulamentar a propaganda e a publicidade de medicamentos. Um artigo em especial – o Art. 27 – merece a nossa atenção:

“Art. 27 A propaganda ou publicidade de medicamentos de venda sob prescrição deve cumprir os requisitos gerais, sem prejuízo do que, particularmente, se estabeleça para determinados tipos de medicamentos, e fica restrita aos meios de comunicação destinados exclusivamente aos
profissionais de saúde habilitados a prescrever ou dispensar tais produtos, devendo incluir informações essenciais referentes:”

Dessa forma, está clara a proibição de qualquer ação promocional de medicamentos sujeitos à prescrição médica, que não seja direcionada para profissionais de saúde habilitados a prescrever ou dispensar tais produtos. Logo, a empresa fabrica um medicamento que será usado por um potencial paciente, mas não pode efetuar qualquer promoção diretamente ao paciente.

E é justamente por isso, que se instala um temido conflito de interesses, ou seja, a relação entre a indústria farmacêutica e os profissionais de saúde; no caso, mais especificamente os médicos. Esse é um dos maiores fardos para os compliance officers que atuam nesse segmento. E por isso mesmo, existe um controle tão estrito do que geralmente é feito promocionalmente, nessa interação.

Você ainda se pergunta a respeito de qual seria o conflito de interesses? Vamos lá… A empresa fabrica um medicamento, cujo beneficiário será algum paciente, mas cuja indicação (prescrição) para a compra será feita por um médico e a legislação permite ações promocionais somente direcionadas àqueles habilitados a prescrever e dispensar medicamentos, ou seja, médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros (esses últimos, sob condição específica que será discutida em um novo artigo).

Se é o médico quem indica (prescreve) o medicamento ao paciente, se é o médico que recebe honorários pela consulta, do paciente, do seu plano de saúde, ou ainda do SUS… enfim, recebe de alguém para zelar pela saúde do paciente, claro está que a empresa fabricante do medicamento não pode interferir na relação médico-paciente de maneira indevida, a fim de ser preservado o juízo de valor do médico na indicação (prescrição) do melhor tratamento para o seu paciente.

E que “maneira indevida” seria essa? Privilegiando o médico como indivíduo, com algo de valor pecuniário ou equivalente. Exemplos: presentes de caráter pessoal, como por exemplo, uma camisa no seu aniversário; entretenimento, como por exemplo, ingressos para partidas de futebol, etc… Em artigo futuro, falaremos em detalhes do suporte científico que ainda é uma prática comum no mercado.

Dessa forma, se a empresa oferece algo que beneficia o médico sob o aspecto pessoal (interesse secundário), em detrimento do seu interesse primário que deveria ser a indicação (prescrição) do melhor tratamento para o seu paciente, pois o mesmo recebera por aquele atendimento, instala-se um complexo conflito de interesses, que, no Brasil, por falta de regras rígidas da autoridade regulatória, pouco ou quase nada acontece. Algumas entidades de classe ainda tentam trilhar o caminho da autorregulamentação, mas suas normas se aplicam apenas a suas associadas.

O fato é que o conflito de interesses se instala com ou sem dolo do profissional de saúde, caso ele comece a receber vantagens pessoais… com dolo, se ele passa a exigir tais vantagens para prescrever tal produto e sem dolo, pois, por mais íntegro que ele seja, as vantagens pessoais acabam influenciando a sua decisão, como uma forma de retribuição, ainda mais em linhas terapêuticas onde eficácia e perfil de segurança de medicamentos sejam muito similares.

Já do ponto de vista das empresas farmacêuticas, há necessidade de criação de um sistema de pesos e contrapesos e um programa de compliance robusto e eficiente, pois nem sempre as fronteiras do que pode e do que não pode são fáceis de identificar.

Dilemas do tipo pagar honorários a um investigador médico para uma pesquisa clínica em um medicamento, quando, por fim, esse médico deverá ser aquele a apontar o medicamento que deve ser comprado por uma instituição ou pagar honorários a um médico para dar uma aula onde haja colegas seus de trabalho da própria instituição, são situações enfrentadas no dia a dia pelas empresas que atuam nesse setor e se não houver políticas e procedimentos claros, o risco de haver problemas para a organização aumenta consideravelmente; especialmente, se o profissional de saúde for um funcionário público.

De tal forma que, a melhor maneira de tentar mitigar o conflito de interesses na relação entre as empresas farmacêuticas e o médico, é tendo como objetivo o bem-estar do paciente. Se ambos os lados estabelecerem o paciente como uma prioridade, essa relação será mais profícua para todos.

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