17.03.2023 – Com certeza, esse é um dos temas mais polêmicos e tormentosos nos últimos anos, envolvendo a interação da indústria da saúde, entendendo-se como tal a indústria farmacêutica, de produtos médico-hospitalares e até mesmo de cosméticos e alimentos, e a classe médica.

Propositadamente, utilizei o verbo “patrocinar”, pois é utilizado, a meu ver de forma equivocada, por uma série de empresas, inclusive multinacionais, que utilizam o verbo “sponsor”, ao conceder uma passagem aérea, “transfers” terrestres, acomodação em hotel, refeições e custeio da taxa de registro no evento. A despeito das restrições contidas em alguns códigos de associações das indústrias, que promovem a autoregulamentação, algumas empresas vão mais além e pagam pela obtenção de vistos, caso o evento seja no exterior, guarda de malas, entretenimento, etc…

Quando me refiro à forma equivocada de utilização do verbo patrocinar no parágrafo anterior, basta entendermos o conceito da palavra patrocínio. Patrocínio pressupõe a oferta de uma transferência de valor, sempre almejando uma contrapartida. Portanto, correta a sua utilização ao afirmarmos que uma determinada empresa irá patrocinar determinado evento, pois ela irá transferir determinado valor que será utilizado no custeio e lucro da instituição que o organiza e a mesma terá, em seu benefício, algumas contrapartidas a serem determinadas pela cota do valor que está pagando, seja a exposição do seu logo, a inserção de um vídeo promocional, totens espalhados pelo local do evento, etc…

Todavia, utilizar patrocínio para justificar a ida de um médico para um congresso é uma temeridade!!! A expressiva maioria das empresas que subsidia o pagamento de despesas de médicos para congressos tem como principal bandeira o fato de que tal iniciativa jamais deve interferir no ato prescricional do médico, garantindo a sua autonomia na decisão de prescrever o melhor tratamento para o seu paciente. Não é a toa que muitas dessas empresas tomam uma série de decisões internas para mitigar o potencial conflito de interesses, criando políticas que criam regras claras a respeito de como tal iniciativa deve ser conduzida internamente, deixando os recursos e a tomada de decisão de escolha do médico a ser beneficiado exclusivamente a cargo da área médica e não da área comercial, estabelecendo os critérios para a eleição do médico a ser beneficiado, limitando a quantidade de benefícios a um mesmo médico no mesmo ano, estabelecendo tetos de transferência de valor para o mesmo médico, ainda que não se refira a honorários, mas sim a cobertura de despesas, etc…

Seja como for, o mais correto é a utilização do termo subvenção, denominado em inglês como “grant”, que se assemelha ao termo doação, porém com a finalidade educacional ou científica. É inquestionável a assertiva de que o papel desempenhado pela indústria da saúde na qualificação e atualização do profissional médico contribui sobremaneira para a disseminação de conhecimento atualizado, considerando a velocidade com que as transformações e inovações ocorrem nesse campo. Porém, é altamente questionável (i) o critério de escolha de tais médicos e (ii) até que ponto tal iniciativa não compromete o médico em prescrever o produto daquela determinada empresa.

Com respeito à escolha dos médicos, por mais que a empresa tente blindar a área comercial do direito de escolha do médico que deve ser beneficiado, ficando a escolha a caráter exclusivo da área médica, é muito difícil que a área médica direcione recursos para aquele médico que mais precisaria de ajuda financeira para participar do referido evento, preferindo alcançar o médico líder de opinião (KOL – Key Opinion Leader), sob o argumento de que este, por geralmente ser um professor ou mesmo alguém que detém a admiração e o respeito dos demais colegas, conseguiria assimilar tais conhecimentos e teria mais oportunidade de disseminar esse conhecimento.

Existem algumas formas de tentar frear o poder de escolha por parte das empresas, na medida em que tais recursos fossem destinados às sociedades médicas e essas tivessem o poder de escolha de determinar que médicos seriam beneficiados, anulando o potencial conflito de interesses a ser estabelecido entre a empresa detentora dos recursos e o médico beneficiado, pois os recursos sairiam de um fundo comum das sociedades médicas, como já era feito nos Estados Unidos há muitos anos. Outrora, o autor desse artigo, em nome de uma entidade de classe e em conversa com um dos maiores oncologistas clínicos do Brasil, discutindo essa questão, recebeu a proposta de redirecionar esses recursos aos hospitais e deixar aos hospitais o poder de escolha dos médicos que seriam beneficiados. Ambas as situações ainda enfrentam um dilema: o critério político de escolha dos médicos a serem escolhidos, favorecendo possivelmente apenas determinado grupo de profissionais, seja pela sociedade médica, seja pelo hospital que receber tais recursos.

Não obstante, o segundo ponto é ainda mais complexo, ou seja, até que ponto tal iniciativa não compromete o médico em prescrever o produto daquela determinada empresa. O médico, antes de tudo, é um ser humano e por mais honesto e íntegro que seja, é movido por razões e emoções humanas. Dito isso e olhando atualmente para a diversidade e qualidade dos produtos na área de saúde oferecidos para determinado tratamento, as opções são as mais diversas possíveis e em sua grande maioria, divergem muito pouco em termos de eficácia e perfil de segurança. Logo, se o médico recebe a subvenção de uma determinada empresa para participar de um congresso e considerando que o produto dessa empresa é similar, em termos de eficácia e perfil de segurança, que o produto da concorrência, muito possivelmente esse médico tenderá a alterar o seu hábito prescricional em benefício daquela empresa, em retribuição ao suporte que recebeu, sem que isso venha a causar qualquer mal ou deficiência no tratamento do seu paciente. Os relatórios comercializados pelas auditorias farmacêuticas facilitam a comprovação do fato.

Em 2017, durante uma aula de um curso de pós-graduação em Buenos Aires, ocorreu a discussão mais significativa da qual o autor desse artigo já participou, com a presença de representantes das maiores empresas da área de saúde do mundo e de alguns especialistas no setor e após uma sessão de debates onde uma corrente defendia a prática e outra corrente a condenava, sobreveio uma indagação de uma participante de uma das 3 (três) maiores farmacêuticas mundiais, que calou a todos os presentes, praticamente encerrando a discussão. A pergunta dela ocorreu da seguinte forma: quando você contrata um arquiteto ou um advogado, você paga as suas despesas para que ele vá se capacitar e prestar o serviço para você? O silêncio reinou por alguns segundos na sala…

Seja como for, a questão precisa ser enfrentada de frente pelas entidades de classe de cada setor, de forma aberta, transparente e seus respectivos comitês de ética precisam se debruçar sobre a questão, de forma a tentar mitigar os potenciais conflitos de interesse nessa prática ou, em último caso, bani-la. Não é fácil para ninguém perder privilégios, mas tais privilégios precisam atender ao interesse coletivo da sociedade e não de um indivíduo ou de uma empresa.

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