LGPD (Brasil)

Quando o fomento à igualdade de gênero esbarra no direito à privacidade

14.03.2024 – Em um momento da história em que diversidade e inclusão são temas que ganham cada vez mais relevância, nos deparamos com uma uma lei federal promulgada em 2023 que está causando grande polêmica atualmente, forçando, inclusive, uma corrida ao Poder Judiciário para escoimar-se ao seu cumprimento.

Em 03 de julho de 2023, foi promulgada a Lei nº 14.611 com o propósito de fomentar a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, alterando inclusive a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), ao garantir o direito de ação de indenização por danos morais, em caso de discriminação por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade, além de atribuir multa de 10 (dez) vezes o valor do novo salário devido pelo empregador ao empregado discriminado, elevada ao dobro, em caso de reincidência.

Todavia, a polêmica resta instalada, especialmente quando a lei obriga as pessoas jurídicas de direito privado, dentre elas as empresas, de maneira geral, com 100 (cem) ou mais empregados, a publicar semestralmente os Relatórios de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, ainda que observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei 13.709/2018, que é a famosa Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Ao tentar resguardar os dados pessoais, a lei determina a anonimização dos dados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.

A despeito da preocupação do legislador com a proteção de dados pessoais, o Governo tem a seu favor a base legal do cumprimento da obrigação legal, prevista no Artigo 7º, II da Lei 13.709/2018; ou seja, se uma lei determinar o cumprimento de alguma medida que exponha dados pessoais de alguém, a mesma deve ter eficácia em razão dessa base legal que sustenta a exposição, sem necessidade de consentimento do titular. Por outro lado, na Colômbia, por exemplo, existe a Resolución 2881 de 15 de julho de 2018, que obriga a indústria farmacêutica e de tecnologias da saúde a informar publicamente todos os pagamentos feitos a profissionais de saúde, de forma que a população possa conhecer onde existe ou não potencial conflito de interesses. Todavia, devido à ausência da base legal do cumprimento da obrigação legal na Lei de Proteção de Dados Pessoais colombiana, ou seja, a Ley 1.581/2012, o consentimento do titular é sempre necessário e dessa forma, se o profissional de saúde não consentir com a exposição de seus dados pessoais, o referido dado não pode ser exibido pela indústria farmacêutica e de tecnologias da saúde.

Por outro lado, nossa LGPD define dados pessoais sensíveis como os dados pessoais sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou à organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. Como é possível concluir, escapa de tal definição dados financeiros ou de antecedentes criminais, por exemplo, que são dados cuja divulgação pode causar um impacto significativo para o titular de dados. No caso em comento, dados financeiros.

Para complementar todas as informações, foi promulgado o Decreto 11.795 de 23 de novembro de 2023, que normatizou a obrigatoriedade das seguintes informações no Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios a ser divulgado pelas pessoas jurídicas de direito privado:

1. Salário contratual2. Décimo terceiro salário3. Gratificações
4. Comissões5. Horas extras6. Adicionais noturno, de insalubridade
de penosidade, de periculosidade,
dentre outros
7. Terço de férias8. Aviso prévio trabalhado9. Relativo ao descanso semanal
remunerado
10. Gorjetas11. Relativo às demais parcelas,
que, por força de lei ou norma
coletiva de trabalho, componham
a remuneração do trabalhador

Segundo ainda o referido decreto, a publicação de tais relatórios deve ocorrer nos meses de março e de setembro, devendo os mesmos serem encaminhados em formato e procedimento próprios estabelecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Porém, o cerne da polêmica é a obrigatoriedade adicional da publicação do referido relatório nos websites das pessoas jurídicas de direito privado, nas redes sociais ou em instrumentos similares, garantida a ampla divulgação para seus empregados, colaboradores e público em geral. Essa obrigação acaba com a confidencialidade de salário guardada a sete chaves por qualquer departamento de Recursos Humanos e põe em cheque a meritocracia, na medida em que se busca uma uniformização de rendimentos, em princípio, sob o argumento de igualdade de gêneros. Além disso, expõe desnecessariamente altos executivos à mercê de todo tipo de golpista e sequestrador, já que, apesar da suposta anonimização, esses malfeitores saberão que na pessoa jurídica de direito privado X existe um(a) gerente, um(a) diretor(a), um(a) vice-presidente, etc… que recebe o valor Y.

Logo, conclui-se que a eficácia da anonimização é relativa, especialmente para cargos em que existem 1 (um) ou 2 (dois) profissionais, tornando-se muito fácil identificar de quem se trata e impossibilitando a anonimização, caso o cargo seja informado.

Ciente do problema, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizaram em 12 de março de 2024 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com o escopo de requerer judicialmente o seguinte:

a) a inconstitucionalidade da expressão “independentemente do descumprimento do disposto no Art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943”, contida no § 2º do Art. 5º da Lei 14.611/2023, por violação direta à isonomia (Arts. 5º, caput e incisos I, V, X; e 7º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988).
b) a inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto do § 6º do Art. 461 da CLT, alterada pelo Art. 3º da Lei 14.611/2023, para que a Egrégia Corte, mediante interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, fixe interpretação para que o pleito de dano moral somente seja cumulável se presente situação de discriminação em sentido estrito (exigindo-se dolo), sem que a essa hipótese se equipare a mera existência objetiva de uma diferença salarial, em consonância com o princípio da segurança jurídica.
c) a inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, do Art. 5º da Lei 14.611/2023, para que a Egrégia Corte, mediante interpretação conforme à Constituição, fixe interpretação no sentido de que não seja possível a aplicação de qualquer penalidade (e notadamente a imposição da elaboração do plano de ação) sem que antes o empregador fiscalizado tenha tido a oportunidade de apresentar defesa, assim como não seja possível a publicação dos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios que envolva a divulgação (pontualmente, pela média ou mediana) de valores salariais e remuneratórios vinculados a cargo ou função, em respeito aos Arts. 1º, inciso IV; 5º incisos V, X, LIV, LV e LXXIX; e Art. 170, inciso IV, todos da Constituição Federal de 1988.
d) a inconstitucionalidade, por arrastamento, do Decreto 11.795/2023 e da Portaria MTE 3.714/2023, que, ao regulamentarem as previsões legais abertas, incorreram nas violações apontadas, por terem sido emanadas no âmbito da interpretação inconstitucional da Lei.
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Alexandre Dalmasso

Advogado especialista em compliance, tendo atuado em compliance desde 2005 em grandes empresas e atualmente, liderando uma área de ética e compliance em um renomado escritório de advocacia.

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